15.11.15

«Diário Inédito» de Vergílio Ferreira

São conhecidos os nove volumes da diarística de Vergílio Ferreira. Nos «Conta-Corrente», iniciados em Fevereiro de 1969, o escritor leva-nos até Évora, Lisboa, Faro, lugares onde leccionou, Fontanelas onde passou boa parte do tempo livre, ou Melo, terra onde nasceu. Mas há um outro volume, editado já depois da morte, em que se revelam mais algumas páginas do diário de Vergílio Ferreira. Trata-se de «Diário Inédito» que foi escrito entre os 28 e os 33 anos de vida do romancista e que revela a passagem pela Nazaré. São breves dias, entre 12 e 23 de Setembro de 1948. O olhar do autor sobre o mar, dois poemas «Baba-se o mar roncando sobre a areia...» e «Vim para aqui pra te desafiar / Mar !...», a escrita empedernida e satírica de Vergílio sobre outros, uma estória vivida na praia e uma observação sobre «...os primeiros que chegam de uma Gronelândia longínqua...». Sabe-se que Vergílio Ferreira tinha problemas respiratórios e talvez por isso tenho ido passar uma temporada à praia. Quando foi colocado em Lisboa, para leccionar no Liceu Camões, passava o tempo livre em Fontanelas, Sintra, bem perto do mar. Em Janeiro de 2016, comemoram-se os 100 anos do nascimento de um dos melhores romancistas portugueses.


Praia da Nazaré, 12 de Setembro
Cá está o mar, o bruto. Estende-se ao comprido, esbarrondado, ronca e baba-se sobre a areia. Pequenos barcos, traquinas, sobem-lhe para o lombo, catam-lhe o peixe – ele dorme. Tem os olhos grandes cerrados, a arca do peito arfa. Não entende ninguém, ninguém o compreende. Estúpido, cavernoso, está para ali. Até que um dia, sem razão, firma-se nas quatro patas, urra temeroso e atira-se às marradas contra tudo. Depois, outra vez sem razão, abate amodorrado, torna a roncar e a dormir. De noite, a lua veio passar-lhe uma carícia de mãos pelo dorso. A besta indiferente, rosnou sempre. Cava-lhe as entranhas uma boçalidade de pasmo. Anda a alegria em volta dele, crianças deitam-lhe quimeras de inocência – e o bruto só ronca. Sinto naquele monstro a trágica desgraça da força imerecida, da força que apenas se justifica no urro e na marrada. E penso, involuntariamente, na minha serra, tão serena e forte, tão altiva e tão cheia de compreensão. Quando há alegria no coração dos homens, tem rebanho e flores de paz. Quando o vento fala de lôbregas fomes cobre-se de luto e brama. Mas sempre com uma força digna que espalha respeito por léguas em redor. Está ali quieta, firme, disposta a carregar com a responsabilidade do seu amor e da sua raiva.

Diário Inédito 1944-49
Vergílio Ferreira
Quetzal, 2010

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