25.5.16

«Escola de Náufragos» de Jaime Rocha

A praia teve sempre náufragos e uma escola de gente que aprendeu a dor da morte, do desaparecimento, gente que está impregnada de sofrimento. Essa dependência do mar tem vindo a ser escrita por alguns autores que se acercaram do paredão e o olharam. A «Escola de Náufragos» é o novo livro de Jaime Rocha. Não sei ainda se de prosa, se de poesia com um dramatismo que se poderia levar à cena. Este livro, tal como em «Tonho e as almas», vai a Raúl Brandão buscar o assombro. Enquanto estou nas primeiras páginas, leio nos jornais: o i diz que Jaime Rocha voltou à infância e que «...“Escola de Náufragos” puxa as suas redes a partir da memória, arranca vivências impressivas de um país que é o retrato de uma das mais veementes noções que temos de Portugal, aquele da austera e firme têmpera que de diferentes modos foi glosada pelos grandes cronistas portugueses», no notícias do bloqueio Fernando Paulouro chama-lhe magnífico, o Diário de Notícias considera que este livro tem uma «narrativa arrepiante». Para que seja o próprio autor a dizer a que regressa, escutamo-lo numa entrevista na Antena1. E aqui podem ler-se as primeiras páginas.


Lá ao fundo, para onde desce a vila, há um grande mar e é sobre ele que cai uma chuva intensa que depois atinge os telhados e transforma as ruas em pequenos riachos. A água vai subindo pelas encostas que protegem a arquitectura dessa vila e desaparece para norte. É do mar que vêm os gritos que caem em cima da criança como uma pedra, como se uma ave belicosa viesse poisar‑lhe nas costas e debicasse as bolas de trapo e papel que o tio lhe havia feito para servirem de brinquedo.
Inicia‑se aqui uma nova vertigem de luto, com as mulheres num choro violento e os homens a fumarem pelos cantos, um cheiro intenso a velas e a borras de café e um grande lençol que estendem em cima de uma cama como se tudo aquilo não fosse apenas um ritual, mas de novo a maldição a entrar naquela família, uma coisa gravada pelo tempo no promontório que tomba sobre o mar.
Nesta casa só se fala de morte, diz o pescador velho, 
e mesmo aquele que anda ali pelo chão aos trambolhões agarrado aos trapos tem os dias contados, vai deixar de ser criança cedo.
Há qualquer coisa de incerto no olhar da criança, uma ausência de claridade como se um besouro voasse à sua volta e lhe turvasse a vista. Está vestido com uma roupa de xadrez, cheia de remendos, e
o seu corpo pequeno, enroscado devido ao frio, exala um cheiro a podre, como se tivesse um rato morto dentro do bolso.

Escola de Náufragos
Jaime Rocha
Relógio D'Água, 2016

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